Reflexões sobre a violência policial e a responsabilidade individual. O meio influencia mas não determina
Imagem/Reprodução: Márcia Foletto, Rio de Janeiro, 1994
Quando nos deparamos com notícias sobre mortes decorrentes de operações no Rio de
Janeiro, somos confrontados com duas reações possíveis. A primeira é atribuir a
responsabilidade exclusivamente ao Estado, vendo essas mortes como resultado de uma
falha governamental. A segunda é perder a empatia, tornando-se insensíveis ao sofrimento
de mais de 130 vidas perdidas.
Ao afirmarmos que esses jovens não tiveram outra escolha senão o crime, ignoramos a
existência daqueles que, diariamente, optam por um futuro honesto. A maioria acorda cedo
e busca um futuro melhor por meio do trabalho e da educação.
Há uma linha tênue entre a falta de sensibilidade em relação a mortes em comunidades e a
crença de que essas pessoas não têm responsabilidade pelas escolhas que fazem. Muitas
vezes, o caminho mais fácil, repleto de promessas de dinheiro rápido, é escolhido em
detrimento de um futuro seguro e estável.
O Estado se mostra INEFICAZ em garantir a segurança dos moradores dessas
comunidades, em criar oportunidades mas EFICAZ em criar um ambiente propício para que
os jovens optem pelo crime em vez do trabalho e do estudo. O Estado permite, diariamente,
que o crime organizado se torne uma forma de “quarto poder” estatal, que possa controlar a
população sem a interferência das outras.
Uma observação que faço sobre as pessoas que entram para o crime, de qualquer tipo, é o
forte deslumbramento consumista. Embora existam diversos fatores que contribuem para
essa escolha, o desejo de pertencimento como indivíduo pleno, e não como cidadão de
segunda classe, é um dos mais impactantes, “possuo, logo sou”.
No livro de Caco Barcellos: “Abusado - O dono do morro Dona Marta” onde Marcinho VP é
entrevistado, revela que entrou para o mundo do crime porque desejava mais do que a
sociedade oferecia a pessoas como ele, com a mesma origem.
O Estado cria as condições, financia o tráfico, permite que ele se infiltre nas instituições e,
em seguida, se torna responsável pelas mortes. É curioso como a "liberdade de escolha"
parece existir apenas para aqueles que já nasceram com privilégios. Uns rejeitam ser
feirantes, motoristas, porteiros, etc, outros se esquivam de pagar impostos, cometem
fraudes e lavagem de dinheiro; adivinha quem é rotulado como criminoso?
Para o filho do rico, a opção de ser soldado de um traficante em uma favela nunca será uma
possibilidade. Somente aqueles que vivem em condições de privação e em ambientes
violentos podem considerar essa "carreira" como uma alternativa viável.
Ou será que um pré-adolescente que vive à sombra da violência policial dia após dia vai
querer uma vida diferente do que lutar contra esse sistema? O tráfico só consegue seus
peões porque a realidade é jovens que se veem cercados por opções limitadas e influências
negativas, esse é papel da sociedade e do Estado na formação de suas trajetórias.
É inquietante perceber que, em muitos casos, a escolha pelo crime surge não apenas como
uma opção, mas como uma resposta a um sistema que falha em proporcionar
oportunidades reais. A indiferença e a falta de empatia diante das mortes e do sofrimento
humano revela uma desconexão entre a sociedade e aqueles que vivem à margem dela.
Somos obrigados a encarar a realidade do sistema que falha em prevenir a brutalidade
policial, e a da vingança que se traveste de resposta emocional imediata, mas que termina
por alimentar o mesmo ciclo de morte.
Além disso, a ideia de que a "liberdade de escolha" é um privilégio reservado a poucos
expõe as desigualdades estruturais que perpetuam o ciclo da violência. O deslumbramento
consumista e a busca por pertencimento refletem uma necessidade humana básica que,
quando não atendida, pode levar a decisões desesperadas.
Se refletirmos sobre essas questões, ao olhar para além das estatísticas e dos estigmas,
reconhecendo a humanidade por trás das escolhas feitas por esses jovens, e a importância
de entender que por mais disfuncional que seja o meio em que se vive, toda escolha ainda
é uma escolha.
Autora
Maria Dreher